17.11.06

Cazuza era burguês, mas era um puta poeta!

Marta me manda um e-mail sobre o dia do consumo solidário, organizado por Cleide Torres do Procon-Recife. Uma das pessoas a quem admiro muito por estar tentando fazer um trabalho, dentro daquela Prefeitura que tanto maltrata os seus funcionários. Aqui do lado, no Sítio da Trindade, se eu esticar o pescoço sou capaz de filar uma aula de Jacaré, ensinando o pessoal a reciclar com inteligência.

Vou ver se passo lá. É que estou ocupado, com tanta coisa...

- Cozinhar uma carne em fogo lento, deixar o molho bem grosso, colocar uns legumes bem frescos e tomar com um pouco de vinho.

- Acordar minha namorada no meio da noite para ela dividir comigo o momento de magia culinária, e ter o prazer sádico de vê-la sem ter coragem de reclamar daquela sacanagem.

- Servir para Chico o meu nem tão simples refogado e fazer com que ele assuma que gosta, mesmo preferindo carne, arroz, feijão e purê.

- Depois cozinhar carne, arroz e purê e ouvir de meu filho que aquela comida é a melhor do mundo. E ter certeza que os publicitários do Sazon são verdadeiros poetas.

- Rir da menina que tem nojo porque estou comendo as folhinhas do meu manjericão, mas mesmo assim parar de arrancá-las, afinal ele está tão bem tratado ali na janela.

- Ir andando na feira para comprar uma plantinha cheirosa escolhida em parceria com o pirralho. E regar quase diariamente até o meu mandacaru, porque até os brutos gostam de carinho.

- Ouvir as mesmas músicas de sempre, sem ter ninguém para reclamar que são as mesmas músicas de sempre. E ainda poder botar no repeat um disco francês que estava esquecido.

- Ler de manhã, trabalhar domingo à noite, cozinhar de madrugada, tomar um banho frio ou bem quente. Receber uma visita inesperada.

Millôr Fernandes comprou seu apartamento em um prédio de quatro andares: "Num prédio dessa altura, mais o térreo com os pilotis e mesmo que se more no último andar pode-se ler o preço dos picolés da carrocinha da Kibon na calçada, admirar o jogo de quadris do broto que atravessa a rua ou chamar o amolador de facas que passa tocando "Cidade Maravilhosa", descreveu Ruy Castro.

Bem, ainda não moro em Ipanema. Meu bairro já foi destruído pelo vil metal e pelos bate-estacas opulentos, assim como o de Millor, mas por sorte eu acordo com os passarinhos do Sítio da Trindade. Cantando numa maravilhosa desordem. Algumas crianças ainda brincam de bola aqui em baixo do prédio. O espaço curto é bom para desenvolver habilidade, diria o otimista. E, se não vejo as gatas das praias do Rio, pelo menos ouço o movimento do povo de Casa Amarela, que cruza o parque para chegar em Casa Forte ou que mata o tempo namorando por ali mesmo.

Mas eu só queria mesmo repetir essa acusação: Eles podem construir uma vasta obra, destinada a confortar ou afligir o ser humano. Surge então um joão-da-costa e autoriza uma obra de dezoito andares, que não conforta ninguém e aflige muito mais.

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