29.12.09

Erramos?

Por Clovis Rossi - Folha de S. Paulo (27-12-2009)

A capa da Folha de ontem diz que "na mídia e em declarações de autoridades americanas, o caso [do menino Sean Goldman, devolvido ao pai após uma novela de cinco anos] ganhou contorno de disputa entre países". É verdade e, por isso mesmo, o papel da mídia precisaria ser discutido nesse caso.

Trata-se de um assunto de família, exclusivamente de família. Não há interesse público envolvido. Há, sim, curiosidade pública, o que é bem diferente. Do que decorre a pergunta que me parece central e me causa desconforto: temos, os jornalistas, o dever, a obrigação, de atender sempre a curiosidade do público, mesmo quando ela é invasiva? Neste caso, é pior ainda, porque invasiva de uma criança.

Não, não me venham dizer que invadimos cotidianamente a privacidade de muitas pessoas. É verdade, mas, em 99,9% dos casos, trata-se de pessoas públicas, que procuraram a notoriedade, não raro apoiando-se na mídia. A busca pelos holofotes tem preço. Muitas vezes, os holofotes acesos pela mídia é que impedem abusos de diferentes naturezas.

Mas Sean não procurou os holofotes. Seu caso acabou por se transformar em exercício de jornalismo-espetáculo. E não apenas no Brasil: a rede norte-americana NBC não fretou um avião para levá-lo aos EUA com o pai por amor à infância, mas por amor ao espetáculo.

Nesse espetáculo acabamos por cometer um pecado grave: demos abrigo a uma acusação, feita pela avó materna, de que o Executivo e o Judiciário brasileiros venderam-se aos Estados Unidos pagando com Sean pela manutenção de vantagens comerciais.

Nenhum jornalista sério diria tal coisa por sua conta. Se o dissesse, correria o risco de purgar elevada pena. No entanto, no jornalismo-espetáculo, a acusação foi ao ar e ao papel. Incomoda, não?

27.12.09

O homem gigante



Como se não precisássemos nos perdoar. Ela me perguntou por quê?

Em Freud e Levi Straus eu não passo da entrada, enquanto você consome como prato principal.

Não tenho necessidade de explicar motivos. Sou repórter por natureza, gosto mesmo é de descrever fatos.

Foucault me disse que a verdade não existe. E eu baixinho respondo que escrevo a minha realidade.

Naquele dia, eu estava ali. Homem perdido, jogado na parede, deslocado, sem saber para onde ir.

Não saberia explicar nem mesmo porque estava ali.

Encarava o meu assassino com a frieza de quem sabe que pode morrer, mas pode também matar.

Ele me dizia para baixar a guarda. E eu continuava com o olhar firme.

Sou um homem. Talvez não seja nenhum gigante. Mas sei da minha força e conheço a beleza.

Era o teu olhar que encarava. Com o respeito de quem sabe o que é o amor.

E a dor de quem viveu o ódio.

En garde mon ami. Always.

But with the knowledge of your sweetness.

I bring on my heart the memory of our love.


Eduardo Amorim - 27 de dezembro de 2009

24.12.09

Espírito natalino


Não gosto muito de Natal. Mas quando é para pegar um mote a gente aproveita o que estiver mais perto.

A Justiça decidir entregar uma criança ao vencedor de uma batalha judicial pela sua guarda justamente na véspera de Natal é um negócio sério. Por que não fizeram dois dias antes? Ai chega um bando de jornalista de ressaca e coloca a foto dessa criança abraçado ao padrasto estampada nos maiores portais do Brasil. Uma coisa de um desrespeito sem tamanho.

Ao contrário de um adolescente que trafica drogas, o menino filho de um americano com uma brasileira não tem culpa nenhuma da mãe ter morrido. Também não há como dizer que as famílias americana ou brasileira estejam longe dos seus papéis naturais, ambas querem manter a criança no seu convívio.

Acontece que a Justiça brasileira demorou para dizer o óbvio. O menino tem pai! Não tem o que discutir. Se ele é órfão de um lado, não havendo impedimento, quem vai cuidar do filho é quem está vivo.

São criados motivos para dizer que o americano tem todos os defeitos do mundo, nunca vi uma acusação séria. Ele pode ser um mal pai? Tanto quanto a avó, o padrasto ou todos da família brasileira. Até que uma decisão transitada em julgado mostre o contrário.

A maioria dos jornalistas que cobriram esse caso aqui no Brasil sempre fizeram um trabalho bambo. Como o narrador da Globo que torce para o juiz favorecer o time sulista. Só que, felizmente, o Brasil tem que respeitar os tratados internacionais de Justiça.

Bom Natal!

17.12.09

A noite de Rita e as fotos de Yemanjá



Recebi um convite para ir a uma festa em um terreiro de macumba. Um convite bonito, bem elaborado, para uma festa de primavera. Como eu não tenho preconceitos com relação a essa crença, aceitei ir de bom grado.


Não era um dia bom. Estava cansada, sem dormir, de ressaca, e sentindo muita dor no dedão do pé que eu havia machucado durante a bebedeira da noite anterior (aliás, até agora não descobri ao certo como). Mas já havia confirmado a presença, então, tomei um analgésico, me arrumei e fui. Gosto de pensar que fui linda, porque aprendi que se arrumar com cuidado para um evento serve também para mostrar ao anfitrião que você se importa com a festa e respeita o trabalho necessário para prepará-la. Mas aquele sapato horroroso – o único que eu agüentava calçar – insistia em berrar o contrário.


Cheguei com uma hora de atraso, e mesmo assim esperei pelo menos mais uma hora e meia pelo início da cerimônia. Sei que estava chata e calada, perdida no meu mundinho interior. Alguns talvez pensassem que era porque eu não queria estar ali. Mas não era. Aquele era apenas um dos momentos em que meu fardo parece pesado demais e eu acabo mergulhando dentro de mim.


Quando a mãe-de-santo finalmente entrou no barracão para dar início a reunião eu relaxei um pouco. Gosto dela. É uma presença forte e por algum motivo me transmite confiança. Eu sou muito sensível a energia do ambiente e das pessoas e raramente me engano com relação a isso. Engraçado que a maioria das mulheres da minha família também é assim, embora muitas neguem para não bater de frente com cristianismo que resolveram adotar. Bruxaria hereditária, diria Naema. E poderosa. Mas isso é assunto para outro post.


O fato é que a mãe-de-santo chegou e os tambores soaram. E parecia que o batuque era dentro do meu peito. Os mestres foram descendo – perdão, não sei bem se o termo é esse – e assumindo o corpo de seus filhos. Era o momento das entidades masculinas. Eu fiquei assistindo encantada, sem conseguir tirar os olhos daquelas pessoas, até que a combinação de cansaço, fumaça e ambiente abafado começou a me incomodar, e me vi forçada a sair do barracão para beber água e me sentar um pouco.


Fui me sentindo pior. Tomei outro analgésico e após a despedida dos mestres, fui comer um pouco com alguns amigos – entre eles a espevitada Iris, que não agüentava de ansiedade – enquanto esperávamos a segunda parte da cerimônia. Ainda descansei um pouco no carro de Marcelo, impaciente com as pessoas me perguntando por que eu estava calada. Eram tantos e tão dolorosos motivos que nem valia a pena dizer, e o cansaço pareceu a desculpa mais cômoda.


Voltamos ao barracão para receber as mestras. E quando a mãe-de-santo incorporou Ritinha, eu entendi porque ela ganhou uma festa só para si. Divertida, desbocada, escrota, egoísta, cheia de si. Mas também, de certa forma, carinhosa, infantil e protetora. São muitos adjetivos para ela, bons e maus. E foi isso o que mais me encantou. A dualidade. Porque ninguém é só bom ou só ruim, todos somos uma mistura dessas duas forças e entidades demasiadamente perfeitas e boas me incomodam.


Ritinha recebeu muitos presentes, com embrulhos que ela rasgava com a alegria de uma criança. Dançou, bebeu, atiçou os homens. Contou que foi prostituta, que morreu assassinada, que foi desejada pelos homens e hostilizada pelas mulheres. Observei em um silêncio encantado aquela figura. Não consegui hostilizá-la. Admirei, e até invejei sua sinceridade inconseqüente. Em certos momentos me senti identificada. Em outros vi nela quase um oposto. E esse vaivém de sensações me manteve presa, absorta, esquecida de tudo o que me incomodava antes.


Por duas vezes, quando passou por mim, ela fez piada de uma história que a mãe-de-santo não tinha como saber. Aquilo me divertiu ao invés de me irritar como aconteceria normalmente. Ela disse que poderia roubar de mim meu “macho”. Eu respondi que ninguém pode me roubar o que nunca foi meu. Ela me olhou séria e não disse mais nada. E eu gostei daquele silêncio. Senti que poderia ter pedido a ela que me desse o homem que quisesse. Mas não quero ter ao meu lado uma pessoa que precisa de um feitiço para me desejar, me querer. Não me parece um bom negócio.


Fui embora cedo, mas a noite de Rita ficou em minha mente. E adormeci com meu peito batendo no ritmo dos tambores.

(texto: Monaliza Brito/ fotos: Marcelo Ferreira)
Fonte: www.clubedasmeninas-mulheres.blogspot.com


Ps: Muito bom trabalhar com gente que admiro tanto!