Recebi um convite para ir a uma festa em um terreiro de macumba. Um convite bonito, bem elaborado, para uma festa de primavera. Como eu não tenho preconceitos com relação a essa crença, aceitei ir de bom grado.
Não era um dia bom. Estava cansada, sem dormir, de ressaca, e sentindo muita dor no dedão do pé que eu havia machucado durante a bebedeira da noite anterior (aliás, até agora não descobri ao certo como). Mas já havia confirmado a presença, então, tomei um analgésico, me arrumei e fui. Gosto de pensar que fui linda, porque aprendi que se arrumar com cuidado para um evento serve também para mostrar ao anfitrião que você se importa com a festa e respeita o trabalho necessário para prepará-la. Mas aquele sapato horroroso – o único que eu agüentava calçar – insistia em berrar o contrário.
Cheguei com uma hora de atraso, e mesmo assim esperei pelo menos mais uma hora e meia pelo início da cerimônia. Sei que estava chata e calada, perdida no meu mundinho interior. Alguns talvez pensassem que era porque eu não queria estar ali. Mas não era. Aquele era apenas um dos momentos em que meu fardo parece pesado demais e eu acabo mergulhando dentro de mim.
Quando a mãe-de-santo finalmente entrou no barracão para dar início a reunião eu relaxei um pouco. Gosto dela. É uma presença forte e por algum motivo me transmite confiança. Eu sou muito sensível a energia do ambiente e das pessoas e raramente me engano com relação a isso. Engraçado que a maioria das mulheres da minha família também é assim, embora muitas neguem para não bater de frente com cristianismo que resolveram adotar. Bruxaria hereditária, diria Naema. E poderosa. Mas isso é assunto para outro post.
O fato é que a mãe-de-santo chegou e os tambores soaram. E parecia que o batuque era dentro do meu peito. Os mestres foram descendo – perdão, não sei bem se o termo é esse – e assumindo o corpo de seus filhos. Era o momento das entidades masculinas. Eu fiquei assistindo encantada, sem conseguir tirar os olhos daquelas pessoas, até que a combinação de cansaço, fumaça e ambiente abafado começou a me incomodar, e me vi forçada a sair do barracão para beber água e me sentar um pouco.
Fui me sentindo pior. Tomei outro analgésico e após a despedida dos mestres, fui comer um pouco com alguns amigos – entre eles a espevitada Iris, que não agüentava de ansiedade – enquanto esperávamos a segunda parte da cerimônia. Ainda descansei um pouco no carro de Marcelo, impaciente com as pessoas me perguntando por que eu estava calada. Eram tantos e tão dolorosos motivos que nem valia a pena dizer, e o cansaço pareceu a desculpa mais cômoda.
Voltamos ao barracão para receber as mestras. E quando a mãe-de-santo incorporou Ritinha, eu entendi porque ela ganhou uma festa só para si. Divertida, desbocada, escrota, egoísta, cheia de si. Mas também, de certa forma, carinhosa, infantil e protetora. São muitos adjetivos para ela, bons e maus. E foi isso o que mais me encantou. A dualidade. Porque ninguém é só bom ou só ruim, todos somos uma mistura dessas duas forças e entidades demasiadamente perfeitas e boas me incomodam.
Ritinha recebeu muitos presentes, com embrulhos que ela rasgava com a alegria de uma criança. Dançou, bebeu, atiçou os homens. Contou que foi prostituta, que morreu assassinada, que foi desejada pelos homens e hostilizada pelas mulheres. Observei em um silêncio encantado aquela figura. Não consegui hostilizá-la. Admirei, e até invejei sua sinceridade inconseqüente. Em certos momentos me senti identificada. Em outros vi nela quase um oposto. E esse vaivém de sensações me manteve presa, absorta, esquecida de tudo o que me incomodava antes.
Por duas vezes, quando passou por mim, ela fez piada de uma história que a mãe-de-santo não tinha como saber. Aquilo me divertiu ao invés de me irritar como aconteceria normalmente. Ela disse que poderia roubar de mim meu “macho”. Eu respondi que ninguém pode me roubar o que nunca foi meu. Ela me olhou séria e não disse mais nada. E eu gostei daquele silêncio. Senti que poderia ter pedido a ela que me desse o homem que quisesse. Mas não quero ter ao meu lado uma pessoa que precisa de um feitiço para me desejar, me querer. Não me parece um bom negócio.
Fui embora cedo, mas a noite de Rita ficou em minha mente. E adormeci com meu peito batendo no ritmo dos tambores.
(texto: Monaliza Brito/ fotos: Marcelo Ferreira)
Fonte: www.clubedasmeninas-mulheres.blogspot.com
Ps: Muito bom trabalhar com gente que admiro tanto!
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