Não gosto de Carnaval. Nunca gostei. Já vim não sei quantas vezes ficar em Olinda com minha mãe. Sempre foi péssimo. Os adultos querendo me levar para ver os blocos. E os pirralhos com as brincadeiras idiotas deles. Nunca gostei de brincar de boneco, meu negócio é futebol, vôlei, basquete. Na pior das hipóteses, botão.
Só me restava ficar assistindo aos desfiles das escolas de samba do Rio. Pelo menos tem muita mulher bonita.
Esse ano até que estava bom, mas no último dia meu pai resolveu me trazer com ele. Quer dizer, acho que ele não arrumou com quem me deixar. Por isso, acabei tendo que vir a reboque e ele está enchendo a cara. Acabou a garrafinha de whisky e já está comprando uma latinha de cerveja. Isso não vai dar certo.
- Eu acho é pouco. Já passou por aqui?
- Passou agorinha. Deve estar no Eufrasio Barbosa. Corre que vocês pegam ele na primeira parada.
- Vamos lá filho! Quero ver se esse futebol está dando resultado.
Carreira! Papai é meio barrigudo, mas ele sempre corre na Jaqueira. Eu que não vou dizer que estou ficando cansado. Para quando for no parque ele ficar me desafiando. "Quero ver se você consegue fazer cooper por um quilômetro sem parar". Eu gosto de correr rápido e quando canso continuo andando. E daí?!
Por que os blocos não saem aqui embaixo. Olinda tem dezenas de ruas largas e arborizadas, mas elas ficam vazias enquanto lá em cima é o maior aperto. Aquele cheiro de xixi, gente suada roçando no nosso corpo e imagina para uma criança de 11 anos o calor e a agonia de ficar ali olhando para as bundas das pessoas. Sem conseguir ver para onde está indo.
"Eu vou esse ano pra lua, não é privilégio, foguete já tem..."
Sempre troco a letra dessa música. Mas adoro ela. Já me disseram que meu pai cantava ela para eu ir dormir quando era pequeno. Bem que era bom ir para a lua. Pelo menos não ia ter que ficar aqui e aguentar os adultos que querem me fazer gostar do Carnaval. Nem todo mundo gosta de bagunça.
Papai acha que essa orquestra é a do Eu acho é pouco. Até parece que dá para reconhecer pela música, como se só esse bloco tivesse um saxofone. Ele pode entender muito de jazz, mas aqui em Olinda durante o Carnaval para cada rua tem uns três blocos sempre tocando os mesmos frevos.
Capaz dele estar certo mesmo, tem um monte de gente de vermelho e amarelo perto daquela esquina. Essas cores eu me lembro. Adoro a camisa que minha irmã me deu. Tem os nomes de um bocado de gente conhecida. Alguns amigos do meu pai e da minha mãe.
Mas acho que não. O bloco deve ter passado por aqui, mas agora está tocando é samba. Isso sim é Carnaval. Deve ser uma escola de samba muito boa. Mas todo mundo está com as cores do bloco, deve ter acabado e o pessoal ficou para ouvir essa bateria. Que bateria!
Papai está cheirando um negócio na camisa.
- Vamos filho que é o Eu acho é pouco mesmo. Toma aqui para você. Mas só cheira pelo nariz.
Eita que perfume delicioso. Deixa a gente leve. Com esse negócio eu ganho fácil os cem metros rasos das Olimpíadas de Barcelona. E olha que eu só vou ter 14 anos. Estou ouvindo uns sininhos nos meus ouvidos. Devo estar ficando bêbado de tanto tomar gole da cerveja das pessoas.
Que menina linda sambando. Poxa, ela está aqui sozinha. Acho que ela deve ter minha idade. Talvez um pouco mais velha, acho que não. É muito pequenininha. Linda. Eu amo Helena e sempre vou amar. Mas nunca tinha visto uma menina tão bonita, parece que o nome dela é Mariana.
Como samba bonito. Tem uns cachinhos de princesa no cabelo. Um sorriso corajoso de segurança. Fico sonhando e imaginando em fazer dela a minha namorada. Queria tanto ter coragem para falar com ela. Mas essa minha timidez...
Está ficando na cara. Não consigo tirar os olhos dessa menina. Também ela tão branquinha, sambando no meio desses negros enormes. Acho que todo mundo está olhando para ela. Ou será que só sou eu? Vou tentar virar meu olho para outro canto.
O bêbado e a equilibrista. Nome engraçado desse bar e tem uns desenhos super bonitos. Queria mesmo um amendoim ou uma batata frita, essa corridinha me deixou com fome. Mas lá vem Graça com um sarapatel.
- Quero não. Não gosto.
- E uma tapioca?
- Tá bom...
Nunca tinha visto uma tapioca tão grande. Acho que essa mulher errou na quantidade de coco e queijo. Não dá nem para fechar os dois lados. Bom para mim, estava morrendo de fome mesmo. Quase não aguento esperar ela fazer. Eita, não tinha nem notado que parou a batucada.
- Pai quero ir no banheiro.
- Faz ali mesmo na árvore.
Estou morrendo de vontade. Mas não aguento quando meu pai me diz isso. Será que ele não encherga que por isso fica o maior cheiro ruim na cidade? Por aqui deve ter algum banheiro. Vou por ali. Eita, está ficando escuro. Poxa, alguém devia ter vindo comigo. Vou voltar.
Ainda bem que voltei logo, a orquestra já está se organizando para sair de novo. O pessoal não ia gostar nada se perdessem o bloco por estarem me esperando. Mas vou ter que ceder e fazer xixi por aqui mesmo. Não estou me aguentando. Vou ali para trás que pelo menos ninguém vai ver minha pitoca.
"Olinda, quero cantar a ti essa canção, teus coqueirais, o teu sol, o teu mar, faz brilhar meu coração, de amor, a sonhar, salve Olinda sem igual, salve o teu Carnaval"
Essa música realmente eu adoro. Me lembro tanto de cantar no Instituto Capibaribe. Se o hino do colégio sempre me fez chorar, essa música sempre me abriu o coração. Pena que meus amigos não estão aqui para cantar comigo, próximo ano acho que vou chamar Rafa e Duda para virem comigo ver esse bloco.
Eita, parece que agora a gente vai subir para a Cidade Alta. Caramba, já tinha esquecido como estou cansado. E só estou vendo ladeira na minha frente. Quanta gente. E esse dragão ainda fica enchendo o saco. Poxa, leva esse negócio lá para frente para abrir caminho. Não custa nada.
Agora vai ter confusão. Tem duas turmas, uma quer subir e a outra quer ir por baixo. Caramba, essa ladeira é muito grande. Não estou aguentando mais. Tomara que já esteja acabando. Tomara que eu não tenha que subir. Tomara que meu pai se toque que estou morto.
- Criança sobe de ré!
Papai sobe a Ladeira da Misericórdia sambando. Eu segui o conselho dele. E ainda fui dos primeiros a chegar no Alto da Sé. Fiquei esperando lá de cima ver o bloco passar, mas onde está aquela menina tão linda. Por aqui não está. Será que foi embora? Estava mesmo tarde para ela ficar sozinha aqui por Olinda.
Agora é descida. Eu não estou nem mais sentindo minhas pernas de tão cansado. Nunca tinha visto esta vista do Recife, no horizonte. E uma menina toda sorridente. Cabelos lisos cor de Eu acho é pouco, pernas longas e magras, parece uma mulher, num corpo de criança.Como ela dança. Mas cadê a menina dos cachinhos? Fico olhando para a outra e de repente encontro o meu sonho.
O bloco aperta o passo. E eu me perco do meu sonho. Será que ela riu para mim? Será que ela olhou para mim?
A roda de samba volta a se formar, é a segunda parada do bloco.
- Vamos filho. Graça tem que botar teu irmão para dormir.
Logo agora que eu encontrei a menina que estava procurando. Caramba, essa Mariana é muito mais bonita que Helena. Um peitinho de mulher. Acho que vi o sutiã dela quando estava frevando, com a camisa toda molhada. A pele bem lisinha de bebê.
Estação final do número 1989.
Era o começo dos meus carnavais.
6 comentários:
Muito bom! Adorei!
Abraços,
Planeta
Lindo, Dado! Apesar de ter passado o carnaval desde sempre em Olinda, na casa dos meus avós, na Prudente de Morais, sempre via tudo pela janela. A muvuca que se formava quando vinha um bloco(e só formava quando vinha bloco mesmo...) me assustava por demais. Bom que depois, já no fim da adolescência, aprendi a brincadeira. Forte abraço e nos vemos pelas ladeiras em menos de 1 mês!Dani
Eu passei vários carnavais em Olinda também na minha infância. Minha mãe, a de Julio e a de Joana Cavalcanti alugavam casa. Esse ai é o que me lembro de ter vivido de Carnaval com meu pai. Ele morreu em maio de 1989, pouco antes do gol de Sorato que falei no último post desse blog
Eu, que nasci no Carnaval, adorei. ;) Bjo!
OoOps! Esqueci de assinar! Bjs, Flavinha
Dado, dei muitas risadas aqui... o primeiro Eu acho é pouco, a gente nunca esquece!
Bjs
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