"Itabira é apenas uma fotografia na parede. Mas como dói!" A lembrança sofrida do poeta Drummond não vem por acaso: o Partido dos Trabalhadores é nossa "cidade natal". Quando dela se parte o coração fica partido. A alma nublada. É com este sentimento de profunda tristeza que decido, após muita consulta e reflexão - que envolveram diretamente cerca de mil pessoas -, deixar o PT.
Nele aprendi, desde 1987, lições de boa prática política, de coletivismo, de ousadia, de jamais perder o horizonte utópico e o objetivo estratégico do socialismo com democracia. Sob sua legenda, com orgulho de "eterno aprendiz", exerci dois mandatos de vereador do Rio e um de deputado estadual, além de disputar, em memorável esforço da militância, já sem apoio da maioria da direção nacional, a Prefeitura da nossa cidade. O PT construiu uma bela pedagogia da aproximação dos movimentos sociais com a inserção nos espaços institucionais. Ele foi a síntese de um alentado movimento de massas nos anos 70 e 80, que se capilarizou nos sindicatos combativos, nas associações de vizinhos, nas comunidades eclesiais de base e entidades nacionais como a CUT, o MST e a então renascida UNE.
Hoje, porém, o PT reiteradamente nega as lições que nos legou, e, para nossa angústia, perde ossatura, alma, aura. Agigantado nas máquinas do poder, cada vez mais acomodado a elas, acriticamente, deixa de ser um partido da transformação social. Justamente quando enfrenta o maior desafio de sua história, o de ser governo da República, o PT se enreda num vendaval de contradições, ambigüidades, perda de referências e esquecimento de princípios: pratica políticas que se chocam com seu programa, implementa medidas que nunca proclamou em campanha, faz alianças - como é imperativo na política - sem estabelecer fronteiras éticas, por mero pragmatismo. Deixa-nos sem discurso e sem ânimo.
O PT vai reproduzindo, organicamente, um grupo dirigente que Chico de Oliveira define como uma "nova classe": capitalista moderada, formada por ex-dirigentes sindicais e profissionais da política que, a partir dos fundos de pensão, das instituições financeiras e dos aparelhos do Estado, transformam-se em gestores do mercado e mediadores das tensões políticas em favor da institucionalidade conservadora.
Respeitando muito aqueles que insistem em lá persistir e resistir, perseguindo sua refundação ou reestruturação, chegou, para nós, a hora da decisão: o chamado Campo Majoritário continuará, com seus aliados, tendo maioria no Diretório Nacional (51%, sem contar o Movimento PT!), e isto significará a manutenção dos atuais procedimentos, no essencial. Não se faz sequer auto-crítica, não haverá investigação séria e punição dura para quem implementou as práticas escusas que hoje vêm à tona.
A estrela cadente do PT continua emitindo alguma luz, cada vez mais tênue, mas tudo indica que esta energia, na sua fonte, já se extinguiu. A tendência é que o PT se torne uma sigla razoável de voto, bom emblema eleitoral, mas "peemedebizado": sem rigor ético, compromisso com o trabalho de base e mística socialista. Um partido cada vez mais semelhante aos partidos convencionais. Um marco histórico na esquerda brasileira que não soube, no governo central, democratizar radicalmente as relações de poder e manter seus princípios. Um partido que desconstitui, no imaginário popular, a política como protagonismo cidadão que melhora a vida das pessoas.
"Seu navio carregado de ideais, que foram escorrendo feito grãos". É esta a sensação, cantada por Edu Lobo e Chico Buarque há duas décadas, que o governo Lula nos provoca. Sua análise comparativa não deve ser feita com a mediocridade privatista da década Collor/FHC mas com o programa mudancista apresentado em 2002, que conquistou a adesão de mais de 52 milhões de brasileiros. O falacioso "caminho único" do neoliberalismo prosseguiu. O governo não mudou a política econômica, ao contrário: reforçou sua ortodoxia e estabeleceu o superávit primário, que hoje esteriliza R$ 80 bilhões/ano. O pagamento (jamais renegociado) de juros das dívidas financeiras corresponde, no Orçamento da União, em um mês, ao gasto anual com o SUS, e, em quinze dias, ao dispêndio anual com Educação! O Brasil, com a maior taxa de juros do planeta, continua sendo o paraíso dos banqueiros, dos especuladores, das 15 mil famílias rentistas. Para cada real destinado ao Bolsa-Família, R$ 15 vão para o pagamento de serviços da dívida.
O governo Lula não logrou, por isso, firmar políticas estruturantes e reformistas na educação, no meio ambiente, na saúde, na habitação, na cultura, no desenvolvimento agrário e mesmo na assistência social, a despeito das valorosas equipes ministeriais que lá estiveram ou estão. Há um dique de contenção instalado na Fazenda, no Planejamento e no Banco Central que impõe um viés conservador e continuísta ao governo, jogando fora, para nosso desespero, uma oportunidade histórica.
Como diz Emir Sader, que é do aguerrido time que ainda batalhará no PT, "o governo fracassa não porque tenha colocado em prática o programa da esquerda, mas porque seguiu o caminho de menor resistência, de ceder à política econômica herdada, acreditando que com ela ganharia o apoio do empresariado, colocando em prática o programa econômico da direita. Ganhou, mas perdeu seu diferencial - o apoio popular. Se vê hoje cercado pelos seus inimigos de sempre, sem poder contar com seus aliados de sempre - os movimentos sociais, a militância do PT, a esquerda" (JB, 28/8/05).
No plano parlamentar, ser deputado do PT transformou-se numa via crucis: ausência quase total de debate político, nenhum diálogo com o Executivo, que só quer subordinação e imposição vertical em todas as questões. Por fim, no caso Valério/Delúbio e seus superiores, veio a quebra de confiança, pois operou-se um poderoso esquema financeiro paralelo, e com paraíso fiscal (nosso inferno !). Isto foi negado por executores e beneficiários até o último momento.
Em todas as votações e decisões importantes foi exigida da Bancada uma postura contrária ao que histórica e programaticamente sempre afirmamos: reforma da Previdência, lei dos transgênicos, lei de falências, parceria público-privada, status de ministro ao presidente do Banco Central, recomposição do salário mínimo, apoio a CPIs, livre escolha de candidato à presidência da Casa. Bancada acocorada, desrespeitada!
A chamada "base aliada" cristalizou-se com partidos e lideranças de tradição fisiológica, que operam na pequena política, e cobram cada vez mais por um apoio sempre frágil, vez que nunca cimentado no interesse público ou com amálgama ideológico. Contrariados, estes "parceiros" são os primeiros a denunciar esquemas que, para o velho e bom PT, sempre foram condenáveis. Mas quem reage a isso e cobra coerência é marginalizado, punido, acusado de "aliar-se à direita", como se direitistas e espúrias não fossem essas práticas chocantes.
Os dirigentes desta política anti-PT e nada progressista, ao proclamar sua votação "fantástica, surpreendente, muito boa mesmo" nas eleições internas recém-realizadas, ainda dizem que "o militante entendeu que a crise não é do PT mas de todo o sistema político" (O Globo, 25/9/05). Sistema político que o governo não quis modificar, engavetando a reforma por exigência de seus parceiros reacionários - com quem muitos petistas sob investigação, e sequer submetidos a comissão de ética interna, mantém estreitas relações. Para quem sempre ostentou com orgulho a estrela no peito, quanta frustração!
"Ah, recomeçar, recomeçar, como canções e epidemias, ah, recomeçar como a lua, como as colheitas e a covardia, ah, recomeçar como a paixão e o fogo, o fogo..." O toque de partida de Aldir Blanc e João Bosco ecoa em nós como aviso de que nem tudo está perdido. Perene reinício. Nesta conjuntura, a direita se reaglutina, empolgada para voltar ao governo nacional, ciente do poder econômico e midiático que nunca deixou de ter. A direita se constitui inclusive como padrão de moral pública: hipocrisia consentida, onda reacionária, que temos a obrigação de barrar! A esquerda, desmoralizada, com as cartas embaralhadas pelo governo Lula, sobrevive como aposta perdida, entrando em nova diáspora. Os movimentos sociais, combalidos, seguem na luta... e na perplexidade. Estamos amargando uma perda histórica, mas a mesma história, com sua dialética, ensina que não há derrotas definitivas.
É hora de aprender com o grande Apolônio de Carvalho: nunca perder a visão estratégica e manter, mesmo em tempos de desencanto, um otimismo visceral. O desafio é reconstruir uma unidade mínima para a esquerda, resignificar o ideário da igualdade social com um movimento pelo socialismo, forjar uma ampla frente antineoliberal. Este esforço de recomposição só prosperará se baseado num projeto para o Brasil, largamente debatido pelas forças da esquerda democrática. Ele deve incorporar propostas de reestruturação radical do Estado brasileiro, soberania nacional e novo padrão de desenvolvimento econômico e social, auto-sustentável e distribuidor de riqueza e renda. Ele pode aproveitar, sem dúvida, entre outras contribuições, muito do que foi produzido no Encontro do PT de dezembro de 2001, no qual foram forjadas as diretrizes para um programa democrático e popular de governo, hoje abandonadas. Ele partirá do entendimento de que a força social de mudança está na luta popular organizada, na reafirmação de que os meios são os fins, em processo de realização. Tudo isto lastreado na humildade de quem se sabe enfraquecido: sem arrogância, hegemonismos, sectarismos.
Para quem está inserido nos espaços institucionais, importantes instrumentos na democracia formal brasileira, a vinculação a partido político é uma necessidade. É, como disse um lavrador de assentamento, "a enxada para a lavoura, que só serve com lâmina afiada". Mas, além de cumprir prazos e normas cartoriais da lei eleitoral, a opção a ser feita deve tentar responder à questão sobre qual a melhor ferramenta para ajudar no esforço coletivo e plural para se reconstruir as referências estratégicas para a esquerda, para uma outra sociedade, fraterna, possível.
Sem a pretensão de entender este caminho como único correto, ousamos apostar no recém-criado - com o aval de 430 mil eleitores de todo o Brasil - Partido Socialismo e Liberdade, o PSOL. Ainda pouco conhecido, o PSOL é projeto em construção, propositivo, ideológico, e (talvez por isso) sem grande visibilidade midiática na sociedade de massas e na teledemocracia em que vivemos. Trata-se, portanto, de disposição para moer no áspero e praticamente começar tudo de novo, sem ilusões de que a história se repita. Cientes das imensas dificuldades eleitorais, inclusive - o que tira a razão de quem, equivocadamente, possa ver algum "oportunismo" nessa escolha.
Entendemos que o PSOL não deve ceder à tentação fácil do "contrismo", de crescer por oposição e contraponto ao PT, de onde vieram seus principais quadros e sua entusiasmada militância. O partido, em fase de constituição, deve buscar filiações de quem, com generosidade, acredite sobretudo na organização popular e na elevação do nível de consciência política de nossa gente, hoje tão desiludida. Não pode se contentar com a presença em atos de rua, com justas reivindicações e muitas bandeiras (aquelas que o PT deixou de levar, há anos...): o trabalho político de tecer a rede dos lutadores do povo é o mais importante.
O PSOL, aprendendo com os erros do PT, livre de toda soberba, não deve pretender, nesta hora crítica, ser referência única, centro e pólo, mas tijolo na construção comum, que, depois do terremoto, se inicia. Saber aliar-se, sem sacrificar princípios. Saber ter flexibilidade tática e firmeza estratégica.
"Fazer da interrupção um caminho novo, da queda um passo de dança, do medo uma escada, do sonho uma ponte, da procura um encontro". Temos, como queria Fernando Sabino, um encontro marcado com a troca de idéias sobre a crise, com o resgate da política do bem comum, com a capacidade de compor, discernindo aliados de inimigos políticos, e estes de adversários, e também inimigos principais de inimigos secundários.
São penosas estas encruzilhadas da história, mas elas não começaram agora. O "breve século XX" pontua a trajetória da esquerda mundial com estes ensaios e erros, poucas conquistas e muitas derrotas, que merecem reflexão atenta. E impuseram escolhas, sempre dramáticas, sempre geradoras de perdas, sempre demandando despojamento e renúncias. Não partimos do zero, como um Sísifo que viu a pedra rolar morro abaixo e necessita começar tudo de novo. Não! É também nossa a herança da democracia direta, do orçamento participativo, do "modo petista" de legislar e governar, com transparência e controle social. Não deixaremos num imaginário museu das lutas populares as experiências de partido-pedagógico e partido-movimento. É da esquerda brasileira a rica experiência do partido de Paulo Freire e Florestan Fernandes, que se reinventava na pluralidade das expressões constitutivas da identidade de um povo que não aceita a "ninguendade" e a pré-cidadania a que as elites aristocráticas e racistas tentam lhe condenar.
Aos que não seguirão conosco, nosso respeito e compreensão, torcendo sinceramente para que consigam realizar o que, após tantas tentativas, já não acreditamos mais ser possível: fazer o PT voltar a ser PT. Esperamos deles também a grandeza do entendimento do nosso gesto, definido não sem profunda inquietação e superação de dilacerantes dúvidas.
Só a história dirá, mais à frente, quem tem razão. Por isso, ninguém deve ter a pretensão de qualquer orgulhoso "eu não disse?". Entendemos, inclusive, que os que estão livres da camisa de força do prazo eleitoral, sem perspectivas de candidatura em 2006, devem concluir o ciclo do PED, votando para a esquerda, minoritária, ter mais um voto e uma potente voz no Diretório Nacional, ponte para a reinserção do partido no campo da democracia socialista.
Estes tempos paradoxais da gestão Lula nos levam ao avesso do avesso na cultura partidária que engendramos: para ser petista de verdade, é preciso sair do PT...
Carlos Drummond, que versejou nossa profunda dor, também alimenta nossa teimosa esperança:
"Não serei o poeta de um mundo caduco.
Também não cantarei o mundo futuro.
Estou preso à vida e olho meus companheiros.
Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.
Entre eles, considero a enorme realidade.
O presente é tão grande, não nos afastemos.
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas."
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