Se cada geração de artistas cresce em diferentes contextos de formação cultural, é natural que sua produção carregue características próprias e específicas ao longo das épocas. Em Pernambuco, essas diferenças entre as várias cenas sempre foi bastante evidente, já que a trajetória artística do Estado sempre foi marcada por ciclos, grupos ou movimentos, como o cinema mudo da década de 1920, o frevo de 1930, a arte social de 1950, o armorial, o rock udigrudi e o super 8 de 1970 ou o cinema van-retrô, as pinturas e gravuras olindenses de 1980, entre muitos outros exemplos. Depois da auto-estima em relação às raízes locais estimulada pelo mangue beat nos anos 90 (repercutida também em outras linguagens como o cinema e a dança), neste início de novo século surge uma ninhada de jovens cineastas, atores, designers, artistas plásticos e músicos livres dessa afirmação da pernambucanidade, expressão em crise nesse novo contexto.
Todos só têm a agradecer aos mangueboys, principalmente por causa do exemplo e pelo espaçoaberto, mas a influência trazida desde a infância pela overdose de internet, videogames e televisão fala mais alto no conteúdo dos filmes, vídeos, peças e discos produzidos por essa nova geração, que, com exceções, ainda não chegou aos 30 anos de idade. Eles não têm nada contra falar sobre a própria terra, mas às vezes até procuram fugir ou ironizar esse tipo de preocupação. Simplesmente fazem o que gostam, cada um com seu estilo, sem se preocupar com aqueles discursos de afirmação comuns há uma década atrás.
Independência - Se encaixariam nessa ascendente cena (palavra que menosprezam) produtoras de cinema e vídeo como a Trincheira, a Ruptura, a Telephone Colorido, a Colônia e a Símio Filmes, companhias de teatro como a Escambo, estilistas como Melk-Z-Da, artistas plásticos como os grupos Mamãe, Aleph e Valdisney e bandas como Mombojó, Rádio de Outono, Mellotrons, Volver, Suvaca di Prata, Vamoz!, Retrovisores, Diversitrônica, Johnny Hooker, Le Bustier en Decadence e Superoutro, além de pessoas isoladas. Impulsionando essa produção estariam núcleos estratégicos, entre eles o bar Garagem, o projeto Coquetel Molotov, o Espaço Laboratório, o Espaço Branco do Olho, o museu MAMÃE, o Cineclube Barravento e o site Recife Rock, todos ainda funcionando com independência e pouquíssimo apoio oficial.
A independência é uma das palavras-chave neste atual ambiente, como lembra Cristiana Tejo, coordenadora de artes Plásticas da Fundação Joaquim Nabuco: "Essa ladainha dos artistas de se lamentar sobre a falta de incentivo é saudade do clientelismo. O estado não tem a obrigação de sustentar espaço de artista. O que ele pode fazer, já está fazendo: criando eventos de formação, de discussão, bolsas de pesquisa teórica e artística, abrindo brechas para ajudar artistas com passagens para exposições e etc." Mesmo assim, apesar de pequeno, já há apoio vindo de quem está no poder. Entidades como Paulo André Pires (Abril Pro Rock), Gutie (Rec Beat) e Governo do Estado e Prefeitura do Recife já demonstram sinais de aceitação e interesse.
Afinidades - Essas questões se confirmam nos trabalhos dos artistas mais jovens do Salão de Artes Plásticas de Pernambuco, como Rodrigo Braga, Lourival Batista, Augusto Japiá, Bruno Vieira e Juliana Notari, na exposição ao mesmo tempo em que shows das bandas Chambaril, Profiterolis, Mombojó, Surpresa de Uva e 3ETs acontecem nas festas do evento. No último Festival de Vídeo do Recife, a participação da Símio Filmes, Telephone Colorido e Trincheira (além de outros videastas ligados a eles) foi de peso considerável. O Fundo Pernambucano de Incentivo à Cultura, entretanto, parece fechar os olhos e mantém-se anacrônico ao privilegiar folclorismos e nomes consagrados. "Participei da comissão do Funcultura durante duas seleções e digo que a grande maioria dos projetos se baseiam em clichês da Pernambucanidade, da folclorização. É impressionante", pondera Cristiana.
Paulo André Pires coordenou, no fim de 2004, o concurso Microfonia, voltado para bandas de estudantes, que recebeu 400 inscrições. Das 12 selecionadas para as finais, apenas duas usavam instrumentos de percussão (algo que era quase um regra na época do mangue) e quatro chegavam ao ponto de cantar em inglês, numa descarada demonstração de independência cultural, beirando a provocação. Mas provocativa mesmo é a postura de bandas como a The Playboys, que assumidamente satiriza os mangueboys, o fanzine Pau no Cxx da Humanidade, que ataca a intelectualidade cultural, e a comunidade do orkut Bumba-Meu-Ovo, que tem 133 membros (incluindo dezenas de artistas acima citados) unidos em nome da ironia à valorização do folclore.
Saudável discussão...
Marcelo Campello, da banda Mombojó:
"Eu acho que esse movimento todo pode ser interpretado até mesmo como um gesto de anarquia. É uma reação de um grupo contra um patriotismo exacerbado e distorcido, que surgiu paralelamente a uma verdadeira e coerente valorização das raízes. O Estado também se contaminou com esse oportunismo e tentou se aproveitar, chegando ao ponto de a bandeira de Pernambuco hoje estar com a imagem banalizada."
Gustavo Albuquerque, da banda Surpresa de Uva:
"Fred 04 se transformou em uma caricatura de si mesmo."
Gutti, organizador do Rec Beat:
"O que pode estar acontecendo é simplesmente uma busca pela diferença. Uma geração sempre nega a anterior para sentir que está fazendo algo novo. É natural, portanto, que os tambores estejam agora sendo deixados de lado, porque aquilo virou clichê. Muita coisa virou clichê. Se você assistir a uma entrevista antiga com Chico Science, pode achar tudo meio ultrapassado, mas o cara era pioneiro dizendo aquilo. Fred 04 e Renato L, bem antes de escreverem o manifesto do mangue, já foram punks de camisas pretas. Nunca dá pra imaginar o que vai acontecer depois, não é que as coisas estão ficando ultrapassadas. Acima de tudo, não podemos construir cercadinhos ao redor do que é nosso, porque se não vamos perder nossa essência que é a diversidade. (...) Toda geração tem um gênio, mas ainda é cedo para especular ou eleger os nomes dessa nova."
Cristiana Tejo, curadora da Torre Malakoff e coordenadora de Artes Plásticas da Fundaj:
"A pernambucanidade é uma formulação que caducou. A jovem produção artística contemporânea de hoje proclama justamente a não-identidade e não responde ao panorama internacional com a fusão de elementos locais e internacionais, mas justamente por não diferenciar o dentro e o fora, transita por linguagens e procedimentos que não possuem referencialidade com um espaço e temporalidade localizados. Volto a repetir, isso não é exclusividade de Pernambuco. Cada vez fica mais difícil afirmar a procedência da jovem produção. A produção está sintonizada com as questões da contemporaneidade, que justamente aponta para a desterritorialidade, para a contaminação, para o livre arbítrio, para a pluralidade."
Moacir dos Anjos, diretor
do Mamam:
"Não vejo um corte tão abrupto, do ponto de vista conceitual e de procedimento, entre a produção cultural pernambucana de meados da década passada e a atual. Creio que é possível fazer uma leitura menos simplista e localizada do "mangue". Mais do que apenas uma proposta de renovação musical, o mangue é uma postura de criação, onde o que importa é o ponto de vista, o lugar a partir do qual se fazem as articulações entre as informações diversas que os criadores possuem no mundo contemporâneo. Não é necessariamente a representação de ícones populares ou o entoar de loas que faz a arte produzida aqui ser reconhecida como diferente, mas sim a maneira particular de articular as imagens, os sons e os símbolos vindos de cantos diversos. Não é também o caso de louvar essa articulação como necessariamente melhor do que as feitas em outras partes (nunca é demais estar atento contra excessos de auto-estima), mas sim de reconhecer a sua diferença. Se quiserem, que morra e enterrem o mangue. Apenas para que ele viva mais plenamente."
Paulo André Pires, organizador do Abril Pro Rock:
"Eu vejo isso como uma evolução da cena musical pernambucana. Isso reflete um amadurecimento dos músicos, que agora deixam de ficar afirmando o discurso para se concentrarem na consistência de seus trabalhos. São jovens que assistiram a uma segunda fase do mangue e fazem seu som sem precisar pegar carona. Se eu recebo um release de uma banda que use palavras como fusão ou mistura, eu já desconfio e acabo descartando. O microfonia serviu para mapear o que está surgindo e comprovou que bandas assim hoje são minoria. Já abri espaço no Abril Pro Rock e pretendo abrir ainda mais, pois acompanho e reconheço o crescimento desse meio indie."
Daniel Bandeira, da Símio Filmes:
"A pernambucanidade chegou a esconder casos graves de falta de talento.Ela chegou a um radicalismo que beirou a xenofobia, que pode ter chegado a isolar a visão para o resto do Mundo. Com o tempo, essa necessidade de afirmação acabou se distanciando de suas intenções iniciais. Essa nova geração de agora está se permitindo adotar novas referências e influências e está alcançando uma maior liberdade de criação. As informações que você recebe aqui são as mesmas que chegam a outros países e a diferença está na maneira como elas são trabalhadas. Uma nova pernambucanidade se caracterizaria pelas formas de criação, e não por ícones específicos."
Valéria Vicente, da Escambo
Cia de Criação:
"Não se trata de negar a história recente da cultura local ou negar a importância da cultura popular na nossa realidade, talvez seja ampliar o debate sobre a cultura, pois a violência, a solidão e a busca de prazer são tão parte da nossa realidade quanto o carnaval e o São João. A Escambo vem refletindo através do teatro e da dança sobre o Mundo contemporâneo e a situação humana porque esses são temas que unem seus integrantes."
Ângela Prysthon, professora e pesquisadora do Departamento de Comunicação da UFPE
"Sobre essa pergunta da pernambucanidade, ou melhor, de uma rejeição a essa "pernambucanidade", tenho a impressão de que é resultado de um movimento de oscilação bem natural. Oscilação que ocorre não só na cultura pernambucana, mas na cultura brasileira. Viemos de uma década (os anos 90) na qual era impossível não afirmar a identidade local, na qual era regra aludir a uma certa "diferença cultural", à cor local. Essa afirmação, por sua vez, apareceu em parte como reação à cultura internacionalizada dos anos oitenta. Era preciso mostrar as peculiaridades locais para se inserir num mercado de cultura global. Passada a euforia da "diferença" (e reconhecendo, inclusive, os limites da "diferença" também), há o retorno aos modelos metropolitanos, a um ideal internacional, ou universal. Nesse sentido, acredito que a busca por padrões mais cosmopolitas, mais internacionais e mais distantes do modelo mangue (na verdade, quase opostos) seja uma volta quase previsível do pêndulo."
Bruno Vieira, artista plástico
"O único sentido íntimo da nossa geração é que ela não tem sentido nenhum, não acredito numa regionalização na atualidade sem que ela esteja impregnada de globalização, de cultura de massa, porque nunca vi, nunca presenciei. Em minha opinião, cada pessoa tem um traço cultural do lugar de origem dentro de si, isto é, uma força superior extraída do subconsciente humano que tem o poder de modificar os destinos da vida de cada um. Tento acreditar na valorização das raízes culturais pernambucanas, pois para mim e para muitos, ela pode servir como 'Objeto' de apego nas horas de necessidade, de se 'entender' dentro da cultura desse lugar, acredito que se pode depositar esperanças dentro dessa nova geração de artistas para superarmos a situação correspondente desse momento de incertezas, de rupturas. A verdadeira crise está refletida nessas rupturas do nosso tempo, em concepções de pessoas cegas que defendem uma regionalização exacerbada e se recusam em receber e perceber as novas situações."
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