12.7.04

A quem serve a difamação? Quem são os criminosos?

Infeliz do país que precisa de heróis, disse o poeta e dramaturgo alemão Bertoldt Brecht. Pode-se acrescentar: mais infeliz o país que, precisando de heróis, vê seus heróis sendo abatidos, aviltados, vilipendiados, tornados reféns de anti-heróis de ocasião. Parece continuar em curso a série de ações orquestradas para tentar esfacelar e, assim, imobilizar os movimentos sociais, no Brasil, desacreditando seus organismos e entidades e criminalizando seus membros que, de algum modo, se destacam. Com isso, essas ações almejam ainda reduzir e enfraquecer o poder das forças democráticas presentes no governo federal e nos partidos que lhe dão sustentação. Tudo leva a crer que o companheiro Reginaldo Muniz Barreto é uma das vítimas dessa conspiração.

O MST e seus militantes têm sido alvos freqüentes das estocadas desses grupos, que se servem de toda sorte de expediente para a difamação e a calúnia com vista a desacreditar e criminalizar quem labuta para melhorar nosso convívio. A recente Comissão Parlamentar Mista de Inquérito - CPMI da Terra, instaurada para "examinar a estrutura fundiária brasileira e o comportamento dos movimentos sociais atuantes no meio rural", decidiu rejeitar a quebra dos sigilos bancário e fiscal do Serviço Nacional de Aprendizagem Rural ? SENAR, da Confederação Nacional de Agricultura e Pecuária - CNAP e da União Democrática Ruralista ? UDR, esta acusada, até, de utilizar recursos públicos para a compra de armas usadas na defesa de seus rincões. Em contrapartida, a mesma CPI aprovou a quebra dos sigilos bancário e fiscal da Associação Nacional de Cooperação Agrícola ? ANCA e da Confederação das Cooperativas de Reforma Agrária do Brasil ? CONCRAB, entidades ligadas aos trabalhadores rurais e os movimentos sociais do campo, entre eles o MST.

Porque a "balança" pende apenas para um dos dois lados? Que "justiça" é essa? Porque os "ruralistas" no Congresso Nacional, legislando em causa própria, se auto-isentam do mesmo tratamento dado aos trabalhadores rurais sem terra organizados? Ser patrão é ser "bom", por excelência? Não ser proprietário, ser trabalhador, ser empregado ? na maioria das vezes, desempregado, ou semi-escravo ? é ser "mau"? Que "maniqueísmo" é esse que penaliza, sempre, os trabalhadores, responsáveis que são por grande parte da riqueza acumulada nesse e em todos os países, riqueza sempre apropriada por uns poucos privilegiados?

O que há de terrível na Reforma Agrária, que faz com que essas forças se mobilizem tanto para impedi-la? Reforma Agrária que foi feita em diversos países sem a convulsão que parece imprescindível entre nós. Reforma Agrária é emprego e fixação das populações campesinas no campo; é alimento farto, saudável e barato nas mesas de todo o País; é redução dos inchaços de miséria nas grandes cidades e conseqüente redução da violência; é, enfim, a possibilidade de tornar esse País um país de todas e todos os brasileiros. Quem não quer que isso aconteça? Quem não quer ver distribuídos os latifúndios, quem não quer acabar com tamanha concentração de terra no campo, onde apenas um por cento da população detém 46% de toda a terra agricultável do País?

Agora, também as ONGs estão no rol dos alvos dessas forças que de tudo fazem para levar a cabo seu projeto político, projeto responsável pela crescente miséria e exclusão da maioria da população brasileira. Não se observam, nem no Brasil, nem no mundo, fatos que indiquem que o universo das ONGs seja marcado por denúncias de corrupção, ou falta de transparência. Ao contrário, até uma recente CPI do Senado Federal, depois de dois anos de exaustiva investigação sobre as ONGs, acabou por apontar apenas uns poucos casos de irregularidades, que facilmente puderam ser coibidas e punidas pelos órgãos competentes.

Os movimentos sociais devem estar atentos e investir contra mais essa manobra, cujas repercussões são mais significativas do que se pode observar de imediato. Esses anti-heróis de ocasião tiram proveito da profunda crise ética que o País atravessa ? crise que se manifesta na confusão entre o público e o privado, e que fornece o substrato capaz de legitimar, muitas vezes, a corrupção nas esferas do poder constituído. Assim, servem-se da ocasião para propagar sua "razão inescrupulosa" ? que enuncia: todos são corruptos em potencial, basta haver oportunidade - e tentar inviabilizar a construção de uma sociedade justa e democrática, porque igualitária, perpetuando seus privilégios e aprofundando o fosso que separa ricos de pobres - fosso onde prolifera a violência socialmente crônica.

Este não é um país de criminosos nem de criminalizáveis. São poucos os que ainda se aproveitam e vivem ostentosamente acima da lei, em detrimento da imensa maioria do nosso trabalhador e sofrido povo. Vamos reverter, de uma vez por todas, essa vaga destrutiva, essa perigosa "razão inescrupulosa" em voga, que com intenção maldosa macula a história de compromisso de organizações como o MST e de pessoas como Reginaldo Muniz Barreto com a justiça e a democracia. Vamos contrariar a inocência de uma das maiores poetas brasileiras, a saudosa Cecília Meireles, quando escreveu "quem não presta fica vivo, quem é bom mandam matar". Sem o que será difícil pôr pedra sobre pedra para erguer qualquer outro edifício que não sejam presídios, quando sabemos o quanto precisamos de templos, de hospitais e de escolas.


Eliana Rolemberg
Diretora Executiva do Cese
www.cese.org.br

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